27.4.06

NA SEPULTURA DE APOLLINAIRE



... voici le temps
Où l'on connaîtra l'avenir
Sans mourir de connaissance


I

aaaa Visitei o cemitério do Père Lachaise à procura dos restos mortais de Appolinaire
aaaa no dia em que o Presidente dos Estados Unidos chegou a França para tomar parte na grandiosa conferência de chefes de Estado
aaaa de modo que a cena é: o aeroporto de Orly azul, uma claridade primaveril no ar sobre Paris,
aaaa Eisenhower avisionando-se do seu cemitério americano
aaaa e sobre as francesíssimas sepulturas do Père Lachaise uma neblina ilusória tão espessa como o fumo da marijuana
aaaa Peter Orlovsky e eu caminhávamos silenciosamente através do Père Lachaise ambos sabíamos que havíamos de morrer
aaaa e por isso demo-nos ternamente as mãos transitórias naquela eternidade em forma de cidade em miniatura
aaaa com estradas e letreiros com os nomes das ruas e pedras e nomes nas casas de toda a gente
aaaa à procura do endereço perdido de um notável Francês do Vazio
aaaa para perpetrarmos o enternecido crime da nossa homenagem perante o seu irremediável menhir
aaaa e depositamos o meu temporário Uivo americano em cima do seu Calligrame silencioso
aaaa para ele o ler nas entrelinhas com os olhos de raios X dos poetas
aaaa tal como ele por milagre lera o seu próprio canto fúnebre no Sena
aaaa e eu desejo que algum miúdo místico deposite um panfleto na minha sepultura para que Deus me leia nas longas noites de inverno no céu
aaaa as nossas mãos já se desvaneceram desse local a minha mão escreve agora num quarto em Paris Git-Le-Coeur
aaaa Ah Guillaume que areia no cérebro tiveste o que é a morte
aaaa percorri de lés a lés o cemitério e contudo não consegui encontrar o teu sepulcro
aaaa o que pretendias tu dizer com aquela fantástica ligadura no crânio dos teus poemas
aaaa Ó leito de morte solene e fétido que tens tu a dizer nada e mesmo isso quase que não é resposta

aaaa Não é possível conduzir um automóvel para dentro de um túmulo de um metro e oitenta embora o universo seja um mausoléu suficientemente grande para tudo
aaaa o universo é um cemitério e eu ando sozinho por aqui
aaaa sabendo que Apollinaire esteve nesta mesma rua há cinquenta anos
aaaa a sua loucura está mesmo ali à esquina e o Genet anda connosco roubando livros
aaaa o Ocidente está outra vez em guerra, cujo lúcido suicídio o porá em ordem
aaaa Guillaume Guillaume como eu invejo a tua fama e o que tu fizeste pela literatura americana
aaaa a tua Zona com o seu longo e louco verso de trampa acerca da morte
aaaa sai do teu sepulcro e fala-me pela porta do meu espírito
aaaa promulga novas séries de imagens haikus oceânicos táxis azuis em Moscovo estátuas negras de Buda
aaaa ora por mim no disco de gramofone da tua existência anterior
aaaa com uma voz lenta e triste e estrofes de uma música profunda e doce tão triste e arranhada como a primeira guerra mundial
aaaa comi as cenouras azuis que enviaste da cova e a orelha do Van Gogh e o peyote alucinado do Artaud
aaaa e descerei as ruas de New York com a capa negra da poesia francesa
aaaa improvisando a nossa conversa em Paris no Père Lachaise
aaaa e o futuro poema inspirado na luz que se infiltrava na tua sepultura



II


aaaa Aqui em Paris eu sou teu hóspede ó sombra amiga
aaaa a mão ausente do Max Jacob
aaaa o Picasso quando jovem trazendo-me uma bisnaga do Mediterrâneo
aaaa eu próprio tomando parte no velho banquete vermelho do Rousseau comi-lhe o violino
aaaa grande festa no Bateau Lavoir o que não vem mencionado nos livros de história da Argélia
aaaa o Tzara no Bois de Boulogne explicando a alquimia das metralhadoras dos cucos
aaaa ele chora traduzindo-me para sueco
aaaa bem vestido com gravata violeta e calças pretas
aaaa uma barba púrpura amorosa que lhe nascia do rosto como o musgo que pende dos muros do Anarquismo
aaaa não se fartava de contar as suas brigas com o André Breton
aaaa a quem ajudara um dia a aparar o bigode dourado
aaaa o velho Blaise Cendrars recebeu-me no atelier e falou-me com voz cansada da enorme vastidão da Sibéria
aaaa o Jacques Vachet convidou-me a examinar a sua terrível colecção de pistolas
aaaa o pobre Cocteau entristecido pelo outrora maravilhoso Radiguet desmaiei com o seu último pensamento
aaaa o Rigaut com uma carta de apresentação para a Morte
aaaa e o Gide a louvar o telefone e outras invenções notáveis
aaaa concordámos em princípio embora ele dissesse mal da roupa interior cor de alfazema
aaaa e apesar de tudo isso bebesse grandes quantidades das folhas de erva do Whitman e se sentisse muito intrigado com todos os amantes chamados Colorado
aaaa príncipes da América chegando com braçadas de schrapnel e de baseball
aaaa Ó Guillaume o mundo tão fácil de combater parecia tão fácil
aaaa sabias tu que os grandes classicistas políticos viriam a invadir Montparnasse
aaaa sem a mínima coroa de louros profética a enverdecer-lhes as têmporas
aaaa nem de verde a pulsar-lhes nas almofadas nem qualquer folha trazida das guerras – Maiakovszi chegou e revoltou-se



III

aaaa Voltei lá sentei-me num túmulo e pus-me a olhar para o teu tosco menhir
aaaa um bloco de granito fino parecia um falo inacabado
aaaa uma cruz desvanecia-se na pedra dois poemas escritos um Coeur Renversé
aaaa o outro Habituez-vous comme moi A ces prodiges que j'annonce Guillaume Appolinaire de Kostrowitsky
aaaa alguém tinha lá posto um frasco de compota com margaridas e uma surrealística rosa de louça barata daquelas que as dactilógrafas têm ao pé da máquina
aaaa tumulozinho feliz com flores e coração virado para cima
aaaa debaixo de uma bela árvore musgosa sob a qual me sentei tronco ondulante
aaaa ramos e folhas de verão sombrinha a cobrir o menhir e ninguém lá
aaaa Et quelle voix sinistre ulule Guillaume qu'est-tu devenu
aaaa o seu vizinho do lado é uma árvore
aaaa ali por baixo os ossos cruzados amontoados e talvez o crânio amarelo
aaaa e os poemas impressos Alcools no meu bolso a voz dele no museu
aaaa Agora há passos de meia idade que se aproximam sobre o saibro
aaaa um homem olha para o nome e dirige-se para o edifício onde está o forno crematório
aaaa o mesmo céu revolve-se por entre as nuvens como nos dias mediterrânicos na Riviera durante a guerra
aaaa bebendo Apollo apaixonado comendo ópio ocasional ele recebera a luz
aaaa As pessoas devem ter sentido um choque quando ele se apagou Jacob & Picasso a tossirem às escuras
aaaa uma ligadura desenrolada e o crânio em paz numa cama dedos papudos estendidos o mistério e o ego tinham-se ido embora
aaaa um sino dobra no campanário no fim da rua os pássaros chilreiam nos castanheiros
aaaa a Famille Bremont repousa num túmulo próximo sob um Cristo peitudo e sexy que pende em cima deles
aaaa o cigarro fumega no meu colo e encha a página de fumo e de chamas
aaaa uma formiga corre sobre a minha manga de tecido cotelé a árvore a que me encosto cresce lentamente
aaaa arbustos e ramos saem dos túmulos uma teia de aranha sedosa brilha contra o granito
aaaa estou enterrado aqui e sento-me ao pé da minha sepultura debaixo duma árvore.

Allen Ginsberg


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