25.6.06

iggy pop on tv





Parental warning: this is an Iggy Pop interview.


27.4.06

balde de poemas



Alexandre O'Neill -
A MEU FAVOR
Allen Ginsberg - NA SEPULTURA DE APOLLINAIRE
Álvaro de Campos - ADIAMENTO; LISBON REVISITED (1923); LISBON REVISITED (1926); (sem título)
Anónimo - (sem título)
António Maria Lisboa - PROJECTO DE SUCESSÃO
António Ramos Rosa - HÁ QUEM PROCURE...
Benjamin Zephaniah - BOUGHT AND SOLD [tradução]; NEIGHBOURS [tradução]; WHAT STEPHEN LAWRENCE HAS TAUGHT US [tradução]
Carol Ann Duffy - AN URBAN POEM [tradução]
David Byrne & Brian Eno - CROSSEYED AND PAINLESS (excerto)
David Mourão-Ferreira - E POR VEZES
Diane Di Prima - MAIS OU MENOS POEMAS DE AMOR
Ewa Lipska - TESTAMENTO
Herberto Hélder - (sem título)
João Camilo - OITAVO DIA
Jorge Sousa Braga - HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA; MEMÓRIA DE LUÍS VAZ DE CAMÕES; SACRIFÍCIO
Konstandinus Kavafis - O DEUS ABANDONA ANTÓNIO
Kurt Cobain - COME AS YOU ARE
Luís Miguel Queirós - ALARMES
Manuel António Pina - IT'S ALL RIGHT, MA...
Patti Smith - PICASSO A RIR
Paul Eluard - A PERTE DE VUE [tradução]; CRIER [tradução]
Pedro Guitarras - (sem título)
Pedro Tamen - (OS PONTOS ORDINAIS)
Reiner Kunze - COMO AS COISAS DE BARRO; CONVITE PARA OUVIR MOZART; CONVITE PARA UMA CHÁVENA DE CHÁ DE JASMIM; DA NECESSIDADE DA CENSURA; DIGNITÁRIO ECLESIÁSTICO FALANDO À CONSCIÊNCIA DOS ARTISTAS; O FIM DA ARTE
René Char - ANTONIN ARTAUD
Russel Edson - OUTONO
Vinicius de Moraes - POEMA DO NATAL


MAIS OU MENOS POEMAS DE AMOR



1.
Por ti
deixava de meter o dedo
no meu belo nariz
e de roer as minhas unhas deliciosas

por ti
mandava arranjar os dentes
e comprava um colchão

Por ti
matava a minha barata favorita
que vive no rodapé
junto do estirador


2.
Espanto-me
pelo que
dormimos

essas noites
e o que perdemos


3.
Quantos dias penas
que vou deixar-te?

Frio não é a palavra exacta.

Meto um diamante
debaixo da língua
e tu
podes ir à procura dele.


4.
Podes ter a certeza que da próxima vez
que formos para a cama
ficarei quite

vou enganar-me no teu nome
e hás-de pensar
que aconteceu
acidental

Diane Di Prima

O DEUS ABANDONA ANTÓNIO



Quando de repente, à hora da meia-noite, se ouvir
passar uma turba invisível
com músicas requintadas, com vozes −
a tua sorte que já cede, as tuas
obras que falharam, os planos da tua vida
que deram em equívoco, não os deplores.
Como preparado há muito, como corajoso,
despede-te dela, da Alexandria que se vai embora.
Sobretudo não te enganes, não digas que foi
um sonho, que foram defraudados os teus ouvidos;
tais esperanças vãs não te rebaixes a aceitar.
Como preparado há muito, como corajoso,
como convém a ti que mereceste tal cidade,
aproxima-te resoluto da janela,
e ouve com emoção, mas não
com as súplicas e as queixas dos covardes,
qual último deleite, os sons,
os instrumentos requintados da turba oculta,
e despede-te dela, da Alexandria que perdes.

Konstandinus Kavafis

PROJECTO DE SUCESSÃO



Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar sentado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nu em casa até o escultor dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitroglicerina
deixar fumar um cigarro só até meio

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.

António Maria Lisboa

HÁ QUEM PROCURE...



Há quem procure por abóbadas e abóbadas
um reflexo de sol
há quem procure com a respiração rouca
o silêncio de um nome
a denotação de uma pedra

Há quem procure na trama da distância
uma hélice para a boca
há quem se erga entre destroços e sementes apodrecidas
para escrever no solo com as mandíbulas crispadas
um nome sem sombra

Há quem destine à modulação de algumas cores
a forma viva e voraz de uma mulher
e encontre só o branco ferozmente árido
há quem procure com antenas incandescentes
uma espádua de álcool na abstracção das areias

Há quem julgue que não há tempo para reflectir na noite sem veias
e caminhe de encontro a um muro negro
e há quem tenha perdido a sensação de intacto
e procure ainda uma lâmpada mas as lâmpadas extinguiram-se
há quem se decida a não esperar, a não ouvir, a não chamar.

António Ramos Rosa

POEMA DO NATAL



Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos −
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela que se apaga na treva
Um caminho entre dois túmulos −
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai −
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte −
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes


AN URBAN POEM



The most unusual thing I ever stole? A snowman.
midnight. He looked magnificent; a tall, white mute
beneath the winter moon. I wanted him, a mate
with a mind as cold as the slice of ice
within my own brain. I started with the head.

Better off dead than giving in, not taking
what you want. He weighed a ton: his torso
frozen stiff, hugged to my chest, a fierce chill
piercing my gut. Part of the thrill was knowing
that children would cry in the morning. Life's tough.

Sometimes I steal things I don't need. I joy-ride cars
to nowhere, break into houses just to have a look.
I'm a mucky ghost, leave a mess, maybe pinch a camera.
I watch my gloved hand twisting the doorknob.
A stranger's bedroom. Mirrors. I sigh like this – Aah.

It took some time. Reassembled in the yard,
he didn't look the same. I took a run
and booted him. Again. Again. My breath, ripped out
in rags. It seems daft, now. There I was standing
alone amongst lumps of snow, sick of the world.

Boredom. Mostly I'm so bored I could eat myself.
One time, I stole a guitar and thought I might
learn to play. I nicked a bust of Shakespeare once,
flogged it, but the snowman was strangest.
You don't understand a word I'm saying, do you?

Carlo Ann Duffy [tradução]

NEIGHBOURS


I am the type you are supposed to fear
Black and foreign
Big and dreadlocks
An uneducated grass eater.

I talk in tongues
I chant at night
I appear anywhere,
I sleep with lions
And when the moon gets me
I am a Wailer.

I am moving in
Next door to you
So you can get to know me,
You will see my shadow
In the bathroom window,
My aromas will occupy
Your space,
Our ball will be in your court.
How will you feel?

You should feel good
You have been chosen.

I am the type you are supposed to love
Dark and mysterious
Tall and natural
Thinking, tea total.
I talk in schools
I sing on TV
I am in the papers,
I keep cool cats

And when the sun is shining
I go Carnival.

Benjamin Zephaniah [tradução]

WHAT STEPHEN LAWRENCE HAS TAUGHT US



We know who the killers are,

We have watched them strut before us
As proud as sick Mussolinis,
We have watched them strut before us
Compassionless and arrogant,
They paraded before us,
Like angels of death
Protected by the law.

It is now an open secret
Black people do not have
Chips on their shoulders,
They just have injustice on their backs
And justice on their minds,
And now we know that the road to liberty
Is as long as the road from slavery.

The death of Stephen Lawrence
Has taught us to love each other
And never to take the tedious task
Of waiting for a bus for granted.
Watching his parents watching the cover-up
Begs the question
What are the trading standards here?
Why are we paying for a police force
That will not work for us?

The death of Stephen Lawrence
Has taught us
That we cannot let the illusion of freedom
Endow us with a false sense of security as we walk the streets,
The whole world can now watch
The academics and the super cops
Struggling to define institutionalised racism
As we continue to die in custody
As we continue emptying our pockets on the pavements,
And we continue to ask ourselves
Why is it so official
That black people are so often killed
Without killers?

We are not talking about war or revenge
We are not talking about hypothetics or possibilities,
We are talking about where we are now
We are talking about how we live now
In dis state
Under dis flag, (God Save the Queen),
And God save all those black children who want to grow up
And God save all the brothers and sisters
Because the death of Stephen Lawrence

Has taught us that racism is easy when
You have friends in high places.
And friends in high places
Have no use whatsoever
When they are not your friends.

Dear Mr Condon,
Pop out of Teletubby land,
And visit reality,
Come to an honest place
And get some advice from your neighbours,
Be enlightened by our community,
Neglect your well-paid ignorance
Because
We know who the killers are.

Benjamin Zephaniah [tradução]

BOUGHT AND SOLD


Smart big awards and prize money
Is killing off black poetry
It's not censors or dictators that are cutting up our art.
The lure of meeting royalty
And touching high society
Is damping creativity and eating at our heart.

The ancestors would turn in graves
Those poor black folk that once were slaves would wonder
How our souls were sold
And check our strategies,
The empire strikes back and waves
Tamed warriors bow on parades
When they have done what they've been told
They get their OBE's.

Don't take my word, go check the verse
Cause every laureate gets worse
A family that you cannot fault as muse will mess your mind,
And yeah, you may fatten your purse
And surely they will check you first when subjects need to be amused
With paid for prose and rhymes.

Take your prize, now write more,
Faster,
Fuck the truth
Now you're an actor do not fault your benefactor
Write, publish and review,
You look like a dreadlocks Rasta,
You look like a ghetto blaster,
But you can't diss your paymaster
And bite the hand that feeds you.

What happened to the verse of fire
Cursing cool the empire
What happened to the soul rebel that Marley had in mind,
This bloodstained, stolen empire rewards you and you conspire,
(Yes Marley said that time will tell)
Now look they've gone and joined.

We keep getting this beating
It's bad history repeating
It reminds me of those capitalists that say
'Look you have a choice,'
It's sick and self-defeating if our dispossessed keep weeping
And we give these awards meaning
But we end up with no voice.

Benjamin Zephaniah [tradução]

MEMÓRIA DE LUÍS VAZ DE CAMÕES



Na autoestrada do Norte jeans coçados e óculos escuros uma longa trança sobre os ombros rumo às florestas de abetos a mochila cheia de coisas esquisitas pássaros mortos malmequeres de plástico

Na autoestrada do Norte a camisa ainda molhada do naufrágio a pequena empregada da boutique desaparecendo para sempre nas águas do Índico Pasolini filmando a Ilha dos Amores

Na autoestrada do Norte completamente pedrado.


Jorge Sousa Braga

HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA



ERA A SEGUNDA VEZ QUE SE FAZIA AO MAR. ERA A SEGUNDA VEZ QUE UMA TRAINEIRA O RECOLHIA A DOIS QUILÓMETROS DA COSTA. O CISNE É UM PALMÍPEDE QUE VIVE NA ÁGUA DOCE. VEM NOS LIVROS. PORQUE HAVIA UM CISNE DE SE FAZER AO MAR? O SEU LUGAR ERA A ÁGUA DOCE. UM LAGO QUALQUER COM MENINOS DE CALÇÃO E MAMÃS A DIZEREM: − OLHA UM CISNE! ERA A SEGUNDA VEZ QUE SE FAZIA AO MAR... O GUARDA DO PARQUE FOI AMEAÇADO DE DESPEDIMENTO. CASO A SUA FUGA SE CONCRETIZASSE CONSTITUÍRIA UM LAMENTÁVEL PRECEDENTE. IMAGINEM QUE... ERA A SEGUNDA VEZ QUE SE FAZIA AO MAR. ERA A SEGUNDA VEZ QUE UMA TRAINEIRA O RECOLHIA A DOIS QUILÓMETROS DA COSTA.

Jorge Sousa Braga

SACRIFÍCIO


i

A Primavera estava à porta
meti-me pois no elevador até ao último andar
de um dos prédios mais altos da minha cidade
subi ainda umas pequenas escadas em caracol
para o sacrifício anual ao grande e magnânimo Senhor da noite
do néon
construí uma pira com pneus velhos garrafas de plástico no meio de uma floresta de antenas de televisão
reguei tudo com gasolina
ajoelhei-me depois humildemente
Desta vez não é o melhor carneiro do meu rebanho que eu tenho para te oferecer Senhor
(não é nada fácil a vida de um pastor numa paisagem de asfalto)
mas apenas uma galinha de aviário
Espero que as hormonas não te façam mal
Aqui tens também Senhor as primícias das minhas colheitas
um quilo de toda a cera que produzi durante o ano fragmentos de unhas
uma esquadrilha de aviõezinhos de papel...



ii

Faz Senhor com que chova regularmente
para que não desça o nível das águas nas albufeiras e as turbinas das centrais eléctricas não parem
para que o trigo cresça e eu possa florir várias vezes ao ano
para que a erva no pátio dos manicómios se conserve sempre verde
Faz Senhor com que o sol se levante todos os dias às oito em ponto
(não vá ele deixar-se levar pelo meu exemplo e ficar a dormir)
e que o vento sopre de vez em quando em rajadas fortes
de maneira a que não fique nada de pé dentro de mim
Acaba de uma vez por todas Senhor com o conflito que opõe as carpas aos polvos gigantes
Que o facto de seres Deus não te suba à cabeça
A América pensou que era Deus e foi esse o mal
que o digam os milhares de americanos agarrados às cadeiras de rodas nos corredores dos hospitais
Faz Senhor com que Fátima e tudo o que ela representa floresça
Com a escassez de ácidos que se está a fazer sentir é cada vez mais difícil ter alucinações
Passamos a vida a explicar-nos com o pénis Senhor mas o mistério permanece
Faz com que o mistério se resolva
A tua bênção Senhor!



Jorge Sousa Braga

IT'S ALL RIGHT, MA...



Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.

Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanta existência).

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.

Manuel António Pina

NA SEPULTURA DE APOLLINAIRE



... voici le temps
Où l'on connaîtra l'avenir
Sans mourir de connaissance


I

aaaa Visitei o cemitério do Père Lachaise à procura dos restos mortais de Appolinaire
aaaa no dia em que o Presidente dos Estados Unidos chegou a França para tomar parte na grandiosa conferência de chefes de Estado
aaaa de modo que a cena é: o aeroporto de Orly azul, uma claridade primaveril no ar sobre Paris,
aaaa Eisenhower avisionando-se do seu cemitério americano
aaaa e sobre as francesíssimas sepulturas do Père Lachaise uma neblina ilusória tão espessa como o fumo da marijuana
aaaa Peter Orlovsky e eu caminhávamos silenciosamente através do Père Lachaise ambos sabíamos que havíamos de morrer
aaaa e por isso demo-nos ternamente as mãos transitórias naquela eternidade em forma de cidade em miniatura
aaaa com estradas e letreiros com os nomes das ruas e pedras e nomes nas casas de toda a gente
aaaa à procura do endereço perdido de um notável Francês do Vazio
aaaa para perpetrarmos o enternecido crime da nossa homenagem perante o seu irremediável menhir
aaaa e depositamos o meu temporário Uivo americano em cima do seu Calligrame silencioso
aaaa para ele o ler nas entrelinhas com os olhos de raios X dos poetas
aaaa tal como ele por milagre lera o seu próprio canto fúnebre no Sena
aaaa e eu desejo que algum miúdo místico deposite um panfleto na minha sepultura para que Deus me leia nas longas noites de inverno no céu
aaaa as nossas mãos já se desvaneceram desse local a minha mão escreve agora num quarto em Paris Git-Le-Coeur
aaaa Ah Guillaume que areia no cérebro tiveste o que é a morte
aaaa percorri de lés a lés o cemitério e contudo não consegui encontrar o teu sepulcro
aaaa o que pretendias tu dizer com aquela fantástica ligadura no crânio dos teus poemas
aaaa Ó leito de morte solene e fétido que tens tu a dizer nada e mesmo isso quase que não é resposta

aaaa Não é possível conduzir um automóvel para dentro de um túmulo de um metro e oitenta embora o universo seja um mausoléu suficientemente grande para tudo
aaaa o universo é um cemitério e eu ando sozinho por aqui
aaaa sabendo que Apollinaire esteve nesta mesma rua há cinquenta anos
aaaa a sua loucura está mesmo ali à esquina e o Genet anda connosco roubando livros
aaaa o Ocidente está outra vez em guerra, cujo lúcido suicídio o porá em ordem
aaaa Guillaume Guillaume como eu invejo a tua fama e o que tu fizeste pela literatura americana
aaaa a tua Zona com o seu longo e louco verso de trampa acerca da morte
aaaa sai do teu sepulcro e fala-me pela porta do meu espírito
aaaa promulga novas séries de imagens haikus oceânicos táxis azuis em Moscovo estátuas negras de Buda
aaaa ora por mim no disco de gramofone da tua existência anterior
aaaa com uma voz lenta e triste e estrofes de uma música profunda e doce tão triste e arranhada como a primeira guerra mundial
aaaa comi as cenouras azuis que enviaste da cova e a orelha do Van Gogh e o peyote alucinado do Artaud
aaaa e descerei as ruas de New York com a capa negra da poesia francesa
aaaa improvisando a nossa conversa em Paris no Père Lachaise
aaaa e o futuro poema inspirado na luz que se infiltrava na tua sepultura



II


aaaa Aqui em Paris eu sou teu hóspede ó sombra amiga
aaaa a mão ausente do Max Jacob
aaaa o Picasso quando jovem trazendo-me uma bisnaga do Mediterrâneo
aaaa eu próprio tomando parte no velho banquete vermelho do Rousseau comi-lhe o violino
aaaa grande festa no Bateau Lavoir o que não vem mencionado nos livros de história da Argélia
aaaa o Tzara no Bois de Boulogne explicando a alquimia das metralhadoras dos cucos
aaaa ele chora traduzindo-me para sueco
aaaa bem vestido com gravata violeta e calças pretas
aaaa uma barba púrpura amorosa que lhe nascia do rosto como o musgo que pende dos muros do Anarquismo
aaaa não se fartava de contar as suas brigas com o André Breton
aaaa a quem ajudara um dia a aparar o bigode dourado
aaaa o velho Blaise Cendrars recebeu-me no atelier e falou-me com voz cansada da enorme vastidão da Sibéria
aaaa o Jacques Vachet convidou-me a examinar a sua terrível colecção de pistolas
aaaa o pobre Cocteau entristecido pelo outrora maravilhoso Radiguet desmaiei com o seu último pensamento
aaaa o Rigaut com uma carta de apresentação para a Morte
aaaa e o Gide a louvar o telefone e outras invenções notáveis
aaaa concordámos em princípio embora ele dissesse mal da roupa interior cor de alfazema
aaaa e apesar de tudo isso bebesse grandes quantidades das folhas de erva do Whitman e se sentisse muito intrigado com todos os amantes chamados Colorado
aaaa príncipes da América chegando com braçadas de schrapnel e de baseball
aaaa Ó Guillaume o mundo tão fácil de combater parecia tão fácil
aaaa sabias tu que os grandes classicistas políticos viriam a invadir Montparnasse
aaaa sem a mínima coroa de louros profética a enverdecer-lhes as têmporas
aaaa nem de verde a pulsar-lhes nas almofadas nem qualquer folha trazida das guerras – Maiakovszi chegou e revoltou-se



III

aaaa Voltei lá sentei-me num túmulo e pus-me a olhar para o teu tosco menhir
aaaa um bloco de granito fino parecia um falo inacabado
aaaa uma cruz desvanecia-se na pedra dois poemas escritos um Coeur Renversé
aaaa o outro Habituez-vous comme moi A ces prodiges que j'annonce Guillaume Appolinaire de Kostrowitsky
aaaa alguém tinha lá posto um frasco de compota com margaridas e uma surrealística rosa de louça barata daquelas que as dactilógrafas têm ao pé da máquina
aaaa tumulozinho feliz com flores e coração virado para cima
aaaa debaixo de uma bela árvore musgosa sob a qual me sentei tronco ondulante
aaaa ramos e folhas de verão sombrinha a cobrir o menhir e ninguém lá
aaaa Et quelle voix sinistre ulule Guillaume qu'est-tu devenu
aaaa o seu vizinho do lado é uma árvore
aaaa ali por baixo os ossos cruzados amontoados e talvez o crânio amarelo
aaaa e os poemas impressos Alcools no meu bolso a voz dele no museu
aaaa Agora há passos de meia idade que se aproximam sobre o saibro
aaaa um homem olha para o nome e dirige-se para o edifício onde está o forno crematório
aaaa o mesmo céu revolve-se por entre as nuvens como nos dias mediterrânicos na Riviera durante a guerra
aaaa bebendo Apollo apaixonado comendo ópio ocasional ele recebera a luz
aaaa As pessoas devem ter sentido um choque quando ele se apagou Jacob & Picasso a tossirem às escuras
aaaa uma ligadura desenrolada e o crânio em paz numa cama dedos papudos estendidos o mistério e o ego tinham-se ido embora
aaaa um sino dobra no campanário no fim da rua os pássaros chilreiam nos castanheiros
aaaa a Famille Bremont repousa num túmulo próximo sob um Cristo peitudo e sexy que pende em cima deles
aaaa o cigarro fumega no meu colo e encha a página de fumo e de chamas
aaaa uma formiga corre sobre a minha manga de tecido cotelé a árvore a que me encosto cresce lentamente
aaaa arbustos e ramos saem dos túmulos uma teia de aranha sedosa brilha contra o granito
aaaa estou enterrado aqui e sento-me ao pé da minha sepultura debaixo duma árvore.

Allen Ginsberg


PICASSO A RIR



bloco-notas
amor divino é assim.
invisível.

bloco-notas
novembro 1. dia de todos os santos. rimbaud-o. vai
para o diabo. picasso sabe. foda-se como ele realmente
sabia! por onde andará ele agora?

bloco-notas
picasso sai-se com esta: quando ele morrer que ninguém diga nada.
deixem que a vida continue a mover-se como um mito.
até que de súbito alguém toque um sino. depois de
uma jantarada diz porque é que é maior do que um século.
ou mais perfeitamente dois séculos.

diário. domingo. 8 abril, 1973.
picasso morre

abril é o mais cruel dos meses etc. que fica?
os ossos de brian jones. amigo de jim morrison. o lenço estampado
de jimi hendrix. anjo de tira de couro. a grinalda de judy.
o colarinho engomado de voltaire. o gorro
escultural de rousseau. o elmo dos cruzados como um
templo am si. a mala de rimbaud. o seu membro artificial
genuflecte. espaço surrealista. o cérebro de pássaro de brancusi.

cocaína superfície lisa. o espelho de mão de carole lombard.
o sobretudo de rothko, o negro vestido de malha de piaf.
fotografias. picasso a rir. picasso a dançar.
picasso a pescar. picasso a andar de cadillac.
um desgosto uma pincelada. a luz deslizando através
da janela da vivenda. o sol a nascer e a pôr-se
e a dormir em limpos lençóis brancos impecavelmente dobrados e
a camisa de picasso com o decote em barco.

Patti Smith

ALARMES



não desenroles tanto a noite
em tua pele. não equipares ao corpo
o tropel das palavras
na toalha. não encalhes em mim
tanta beleza. aperta
a blusa. recolhe do meu rosto
os teus olhares, alguma lágrima
brilhando sobre a mesa.

sossega. é cedo ainda
para o deserto trepidante
do desejo. não julgues saber já
que desenlaces
o meu corpo procura
sobre o teu. nem eu te ofereço
o armadilhado morango
do amor. apenas peço
que adormeças,
que dês lugar na cama
ao meu fantasma.

coloca o coração
numa órbita prudente. talvez não tarde
o tempo,
o lugar onde eu te diga
as palavras que desligam
os alarmes que instalei
em toda a alma.

Luís Miguel Queirós



Não temos cavalos, nem carruagens, nem palácios
Mas há em nós corações de marinheiros
Um maravilhoso hálito a gin
Vagueamos à noite pelas ruas, pelas docas, pela vida
E somos maravilhosos
Porque somos vagabundos para sempre.

Pedro Guitarras

COME AS YOU ARE



Come as you are, as you were,
As I want you to be
As a friend, as a friend, as an old enemy
Take your time, hurry up
The choice is yours, don't be late
Take a rest, as a friend, as an old memoria

Come dowsed in mud, soaked in bleach
As I want you to be
As a trend, as a friend, as an old memoria

And I swear I don't have a gun
No, I don't have a gun

Kurt Cobain


CRIER



Ici l'action se simplifie
J'ai renversé le paysage inexplicable du mensonge
J'ai renversé les gestes sans lumière et les jour impuissants
J'ai par-dessus terre jeté les propos lus et entendus
Je me mets à crier
Chacun parlait trop bas parlait et écrivait
Trop bas

J'ai reculé les limites du cri

L'action se simplifie

Car j'enlève à la mort cette vue sur la vie
Qui lui donnait sa place devant moi

D'un cri

Tant de choses ont disparu
Que rien jamais ne disparaîtra plus
De ce qui mérite de vivre
Je suis bien sûr maintenant que l'été
Chante sous les portes froides
Sous des armures opposées
Les saisons brûlent dans mon coeur
Les saisons les hommes leurs astres
Tout tremblants d'être si semblables

Et mon cri nu monte une marche
De l'immense escalier de joie

Et ce feu nu qui m'alourdit
Me rend ma force douce et dure

Ainsi voici mûrir un fruit
Brûlant de froid givré de sueur
Voici la place généreuse
Où ne dorment que les rêveurs
Le temps est beau crions plus fort
Pour ce que les rêveurs dorment mieux
Enveloppés dans des paroles
Qui font le beau temps dans mes yeux

Je suis bien sûr qu'a tout moment
Aïeul et fils de mes amours
De mon espoir
Le bonheur jaillit de mon cri
Pour la recherche la plus haute
Un cri dont le mien soit l'écho.

Paul Eluard
[tradução]

A PERTE DE VUE

DANS LE SENS DE MON CORPS


Tous les arbres toutes leurs branches toutes leurs feuilles
L'herbe à la base les rochers et les maisons en masse
Au loin la mer que ton oeil baigne
Ces images d'un jour après l'autre
Les vices les vertus tellement imparfaits
La transparence des passants dans les rues de hasard
Et des passants exhalées par tes recherches obstinées
Tes idées fixes au coeur de plomb aux lèvres vierges
Les vices les vertus tellement imparfaits
La ressemblance des regards de permission avec les yeux que tu conquis
L'imitation des mots des attitudes des idées
Les vices les vertus tellement imparfaits

L'amour c'est l'homme inachevé.

Paul Eluard
[tradução]



No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas
De quem sabe amar.

Qualquer que ele seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,
Qualquer fosse o voo.

Por certo eles foram mais reais e felizes.


Álvaro de Campos

ADIAMENTO



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo,
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos


LISBON REVISITED (1926)


Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome e carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
de quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram as cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achado o número da porta que me deram,

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, que aqui voltei,
E aqui tornei a voltar e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou que estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!...


Álvaro de Campos



LISBON REVISITED (1923)



Não, não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna.

Que mal fiz eu aos deuses todos?


Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou um doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, pelo amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo.
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho.

Álvaro de Campos

DIGNITÁRIO ECLESIÁSTICO FALANDO À CONSCIÊCIA DOS ARTISTAS



Ele não disse: sede
criadores

Ele disse: servi
a fé

Tão pouca é a sua fé
na criação

Reiner Kunze


CONVITE PARA OUVIR MOZART



Chove

O Danúbio corre pelo vale
e pelo céu adiante

Só que no céu faltam os barcos

Cá em baixo eles cumprem o horário
para meia dúzia de sequiosos

A chuva penetra nas almas

Vamos lançar o anzol
para cima

Reiner Kunze


COMO AS COISAS DE BARRO


Mas colo os meus pedaços como um vaso
de barro partido (Jan Stacel)

1


Queríamos ser como as coisas de barro

Existir para aqueles
que às cinco da manhã bebem o café
na cozinha

Pertencer às mesas simples

Queríamos ser como as coisas de barro, feitas
de terra do campo

E que connosco ninguém possa matar

Queríamos ser como as coisas de barro

No meio de
tanto
aço
rolante


2


Seremos como os cacos das coisas
de barro: nunca mais
um todo, talvez
um cintilar
no vento


Reiner Kunze

CONVITE PARA UMA CHÁVENA DE CHÁ DE JASMIM



Entre, dispa a
tristeza, aqui
pode nada dizer


Reiner Kunze

DA NECESSIDADE DA CENSURA



Retocável é
tudo

Excepto
o negativo
em nós

Reiner Kunze

O FIM DA ARTE



Tu não deves, disse a coruja ao galo silvestre,
tu não deves cantar o sol
O sol não é importante

O galo silvestre tirou
o sol do seu poema

Tu és um artista,
disse a coruja ao galo silvestre

E foi uma beleza de escuridão


Reiner Kunze



Facts are simple and facts are straight
Facts are lazy and facts are late
Facts all come with points of view
Facts don't do what I want them to
Facts just twist the truth around
Facts are living turned inside out
Facts are getting the best of them
Facts are nothing in face of things
Facts don't stain the furniture
Facts go out and slam the door
Facts are written all over your face
Facts continue to change their shape

I'm still waiting... I'm still waiting... I'm still waiting... I'm still waiting...


David Byrne and Brian Eno



Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice.
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.

TESTAMENTO



Após a morte de Deus
abriremos o testamento
para saber
a quem pertence o mundo
e aquela grande armadilha
de homens.

Ewa Lipska

OUTONO



Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados, dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono.

Russel Edson

E POR VEZES



E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira


A MEU FAVOR



A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio a cima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos


Alexandre O'Neill

ANTONIN ARTAUD



Não tenho voz para o teu elogio, irmão maior.
Se me inclinasse sobre o teu corpo que a luz vai dispersar,
O teu riso afastar-me-ia.
O coração no meio de nós, durante aquilo a que se dá o nome impróprio de bela

trovoada,
Cai várias vezes,
Mata escava e queima,
E mais tarde renasce na doçura do cogumelo.
Não precisas de um muro de palavras para altear a tua verdade ,
Nem das volutas do mar para ungir a tua profundeza,
Nem dessa mão febril que nos encerra o pulso,
E ligeira nos leva a derrubar uma floresta
De que as nossas entranhas são o machado.
Basta. Regressa ao vulcão.
E nós,
Que choremos, que te rendamos ou perguntemos: «Quem é Artaud?» a essa espiga de
dinamite de que não se solta nenhum grão,
Para nós nada está mudado,
Nada, a não ser esta quimera bem viva do inferno que se despede da nossa angústia.

René Char


(Os pontos ordinais)



Quando se fazem água os olhos
e o sol nasce outra vez por sobre a praia
abre-se e escorre o mundo como o fruto
comido sob a sombra.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaa Ao norte
abeiram-se ventos surdos, lerdas cruzes
caminham por si sós com pés de ferro,
apodrecem areias pela noite.
Não sei se há florestas verdadeiras.
São folhas de cimento (ó Nibelungos!),
são armários de corda cheios de bicos
dentro, e uivos. São pálidas senhoras
nos seus colos sentadas desde sempre
com unhas fortes e o pequeno defeito
dos dentes canibais: ao norte.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água os olhos
e se estendem os braços para toda a parte,
não se procura nada, o ar
tem o azoto próprio e colocado parco
na correcta função: o mundo
não tem rosas dos ventos
além de rosas, ventos, e a pequena harmonia
de ser um centro inteiro.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Ao sul
há luzes negativas, e as tais areias podres
são bolachas desfeitas contra a pele.
Se tudo é rarefeito, tudo é cheio
de males devagarinho e delicados, poços
amargurados, já verticais e fixos
antes de se pensarem, imensidades
crassas onde a lonjura apenas
é fumo aguado, olvido,
assombração caiada. E garras
sob os panos: sul.
aaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água os olhos,
ao se cavar na terra temos neve
tão quente como nós, e larga colcha
de lumes inauditos cobre os dedos
mais sagazes que o medo, mais
fortes do que a nuvem. Tempo
alagado e limpo sobre as ervas
minúsculas, tão finas, que o próprio
vento as zune com cuidado, embora
se nos baste, e a lava cresça
em festa e madrugada.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaa A leste
os húmeros abatem-se, os goivos secam
como no peito vai enferrujando
a espada. À noite os calendários
acendem-se com brilhos, entumescem
de gritos adestrados e de polpa
com repressões geladas. É defectivo
o verbo, nem há outros, as pessoas
são todas a terceira. Separam
a morte os tendões da memória,
a carne cospe-se para um balde
vazio, os ovos tremem dentro
como lágrimas presas: a leste.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água os olhos
e as horas refluem ao coração mais largo,
saltam da terra os poços,
amadurecem uvas junto aos dedos
e há tigelas de orvalho preparadas
para as manhãs no peito. Em pé
há mundo que se veja até ao rio,
onde os choupos são novos e conhecem
os corpos e os peixes. Sim, há noites
para falar mais baixo, porque tudo
se chega ao pé de tudo, e o limiar
da boca é toda a voz.
aaaaaaaaaaaaaaaaaa A oeste
o sono é baço, e morde o pano
que as parte cobre onde é velos
a cobra. Os seres abocam
à névoa do silêncio, engordam
muito em baixo, junto aos calcanhares,
e cardam a cal e o sebo
de um roedor gigante sentado sobre as patas.
As janelas apartam, os nomes secos
ateiam as fogueiras prolongadas
um pouco para a direita, para o norte.
As opas são opacas e azedas.
Não há já chuva a oeste.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água, os olhos
abrigam luz tão leve qual um vento
que regressasse ao ninho pela tarde.
As tômbolas de folhas nos concedem
um lar sem dimensão onde as palavras
são dadas e mais longas. Onde é preciso
nada e as luas breves. Onde
os brilhos são mar ao pé da mão
e a vida achada entre uma pedra
e outra. Saber é não saber
quando um repente avança
por sobre a pele do verbo
e a verdade se instala, e acordada
é mesa e cama e copo,
roupa lavada para o amanhecer
ou pequeno assobio colocado
entre a boca e a boca. Que tojo
nos pertence, tudo terra?
Não passa o que se passa:
e é fazerem-se água os olhos,
no jeito em salto e branco
em que as cores apetecem
outras cores a seu lado,
que permite que exista sobre o ramo,
junto do peito ou perto pelo ar,
o real definido além dos mapas,
a mão no espaço,
aaaaaaaaaaaaaaa um corpo,
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa a liberdade,
um pássaro no mundo.


Pedro Tamen


OITAVO DIA



Os dias são os dias, as noites são as noites,
todo o tempo é tempo de morrer,
Na Noruega, por exemplo, a noite não existe,
não existia pelo menos quando eu lá estive. Pergunto:
quem decide da densidade dos líquidos, da cor das portas,
das formas que hão-de amenizar os azulejos? Perguntava.
Fui engolindo descuidadamente todas as palavras. Nunca
tive nada meu, tomei sempre coisas emprestadas,
de mim mesmo sobretudo fui tomando tudo emprestado.
O sorriso não me serve nos dentes, ultrapassa
a cor dos meus cabelos, transforma-se subitamente
em qualquer coisa como o sabor das águas outonais.
Pergunto: quem secretamente foi erguendo os muros
que para sempre nos separam da branquíssima eternidade?
Quem insidiosamente foi plantando pelo caminho as pedras
onde tropeçamos? Quem, eu pergunto apenas, secreta,
insidiosamente, foi alargando para o sul a altitude das planícies
a tal ponto que nunca mais se viu o mar? Perguntava.
Na Noruega as planícies são montanhas e a água do mar
tem uma cor excessivamente salgada. É por isso que apetece
deslizar nas noites ao longo de longos corredores
em casas de madeira, escutar cavar
nas paredes o som do bolor.
A natureza é extremamente cuidadosa, a natureza possui
apuradamente todos os vícios. Eu prefiro sobretudo
as raparigas timidamente jovens, as mães por convenção.
Lamento a estúpida convencionalidade do meu sorriso de ver o mar.
(O mar não existe, é água, puramente água).
E nunca mais vi a pele inferior à pele dos meus dedos,
aquela imediata superfície que suporta a superfície.
Os dias são os dias, as noites são as noites,
às vezes sinto-me gravemente pesado, de uma gravidade azulada,
o meu corpo é frio e baço como às janelas dos comboios,
lavo os dentes sucessivamente, progressivamente, de cada vez um,
pergunto: quem coloriu de amarelo a eficacíssima pasta com que me
descario os dentes, a eficacíssima escova com que
não descarno as raízes. Perguntava. Recordo:
Só nasci definitivamente pelos olhos do meu pai,
por isso me custa tanto ser, amar, estar, e até
imaginar o rosto dos peixes, a cor de coisas como as algas.


João Camilo



Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.


Herberto Hélder