27.4.06

(Os pontos ordinais)



Quando se fazem água os olhos
e o sol nasce outra vez por sobre a praia
abre-se e escorre o mundo como o fruto
comido sob a sombra.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaa Ao norte
abeiram-se ventos surdos, lerdas cruzes
caminham por si sós com pés de ferro,
apodrecem areias pela noite.
Não sei se há florestas verdadeiras.
São folhas de cimento (ó Nibelungos!),
são armários de corda cheios de bicos
dentro, e uivos. São pálidas senhoras
nos seus colos sentadas desde sempre
com unhas fortes e o pequeno defeito
dos dentes canibais: ao norte.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água os olhos
e se estendem os braços para toda a parte,
não se procura nada, o ar
tem o azoto próprio e colocado parco
na correcta função: o mundo
não tem rosas dos ventos
além de rosas, ventos, e a pequena harmonia
de ser um centro inteiro.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Ao sul
há luzes negativas, e as tais areias podres
são bolachas desfeitas contra a pele.
Se tudo é rarefeito, tudo é cheio
de males devagarinho e delicados, poços
amargurados, já verticais e fixos
antes de se pensarem, imensidades
crassas onde a lonjura apenas
é fumo aguado, olvido,
assombração caiada. E garras
sob os panos: sul.
aaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água os olhos,
ao se cavar na terra temos neve
tão quente como nós, e larga colcha
de lumes inauditos cobre os dedos
mais sagazes que o medo, mais
fortes do que a nuvem. Tempo
alagado e limpo sobre as ervas
minúsculas, tão finas, que o próprio
vento as zune com cuidado, embora
se nos baste, e a lava cresça
em festa e madrugada.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaa A leste
os húmeros abatem-se, os goivos secam
como no peito vai enferrujando
a espada. À noite os calendários
acendem-se com brilhos, entumescem
de gritos adestrados e de polpa
com repressões geladas. É defectivo
o verbo, nem há outros, as pessoas
são todas a terceira. Separam
a morte os tendões da memória,
a carne cospe-se para um balde
vazio, os ovos tremem dentro
como lágrimas presas: a leste.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água os olhos
e as horas refluem ao coração mais largo,
saltam da terra os poços,
amadurecem uvas junto aos dedos
e há tigelas de orvalho preparadas
para as manhãs no peito. Em pé
há mundo que se veja até ao rio,
onde os choupos são novos e conhecem
os corpos e os peixes. Sim, há noites
para falar mais baixo, porque tudo
se chega ao pé de tudo, e o limiar
da boca é toda a voz.
aaaaaaaaaaaaaaaaaa A oeste
o sono é baço, e morde o pano
que as parte cobre onde é velos
a cobra. Os seres abocam
à névoa do silêncio, engordam
muito em baixo, junto aos calcanhares,
e cardam a cal e o sebo
de um roedor gigante sentado sobre as patas.
As janelas apartam, os nomes secos
ateiam as fogueiras prolongadas
um pouco para a direita, para o norte.
As opas são opacas e azedas.
Não há já chuva a oeste.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Mas
quando se fazem água, os olhos
abrigam luz tão leve qual um vento
que regressasse ao ninho pela tarde.
As tômbolas de folhas nos concedem
um lar sem dimensão onde as palavras
são dadas e mais longas. Onde é preciso
nada e as luas breves. Onde
os brilhos são mar ao pé da mão
e a vida achada entre uma pedra
e outra. Saber é não saber
quando um repente avança
por sobre a pele do verbo
e a verdade se instala, e acordada
é mesa e cama e copo,
roupa lavada para o amanhecer
ou pequeno assobio colocado
entre a boca e a boca. Que tojo
nos pertence, tudo terra?
Não passa o que se passa:
e é fazerem-se água os olhos,
no jeito em salto e branco
em que as cores apetecem
outras cores a seu lado,
que permite que exista sobre o ramo,
junto do peito ou perto pelo ar,
o real definido além dos mapas,
a mão no espaço,
aaaaaaaaaaaaaaa um corpo,
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa a liberdade,
um pássaro no mundo.


Pedro Tamen


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