27.4.06

OITAVO DIA



Os dias são os dias, as noites são as noites,
todo o tempo é tempo de morrer,
Na Noruega, por exemplo, a noite não existe,
não existia pelo menos quando eu lá estive. Pergunto:
quem decide da densidade dos líquidos, da cor das portas,
das formas que hão-de amenizar os azulejos? Perguntava.
Fui engolindo descuidadamente todas as palavras. Nunca
tive nada meu, tomei sempre coisas emprestadas,
de mim mesmo sobretudo fui tomando tudo emprestado.
O sorriso não me serve nos dentes, ultrapassa
a cor dos meus cabelos, transforma-se subitamente
em qualquer coisa como o sabor das águas outonais.
Pergunto: quem secretamente foi erguendo os muros
que para sempre nos separam da branquíssima eternidade?
Quem insidiosamente foi plantando pelo caminho as pedras
onde tropeçamos? Quem, eu pergunto apenas, secreta,
insidiosamente, foi alargando para o sul a altitude das planícies
a tal ponto que nunca mais se viu o mar? Perguntava.
Na Noruega as planícies são montanhas e a água do mar
tem uma cor excessivamente salgada. É por isso que apetece
deslizar nas noites ao longo de longos corredores
em casas de madeira, escutar cavar
nas paredes o som do bolor.
A natureza é extremamente cuidadosa, a natureza possui
apuradamente todos os vícios. Eu prefiro sobretudo
as raparigas timidamente jovens, as mães por convenção.
Lamento a estúpida convencionalidade do meu sorriso de ver o mar.
(O mar não existe, é água, puramente água).
E nunca mais vi a pele inferior à pele dos meus dedos,
aquela imediata superfície que suporta a superfície.
Os dias são os dias, as noites são as noites,
às vezes sinto-me gravemente pesado, de uma gravidade azulada,
o meu corpo é frio e baço como às janelas dos comboios,
lavo os dentes sucessivamente, progressivamente, de cada vez um,
pergunto: quem coloriu de amarelo a eficacíssima pasta com que me
descario os dentes, a eficacíssima escova com que
não descarno as raízes. Perguntava. Recordo:
Só nasci definitivamente pelos olhos do meu pai,
por isso me custa tanto ser, amar, estar, e até
imaginar o rosto dos peixes, a cor de coisas como as algas.


João Camilo

No comments: